
Como dois abismos a beijar-se...

Ao procurar interpretações da maravilhosa cantata Ich habe genug deparei-me com esta versão absolutamente mágica pelo mezzo-soprano americano Lorraine Hunt, uma das minhas vozes favoritas no repertório barroco e que tive o privilégio de ver ao vivo no grande auditório do CCB há uns 15 anos no papel principal da Medée de Charpentier.
A interpretação torna-se particularmente comovente quando sabemos que este foi o último concerto da grande cantora na Holanda, no Muziekgebouw an het Ij (sala onde já tive o privilégio de cantar algumas vezes), cerca de um ano antes da sua morte, em 2006, aos 52 anos, vítima de cancro.
Para quem não conhece a Cantata, o texto desta primeira ária fala precisamente do cansaço criado pela vida e pelo desejo da chegada da morte, aproveitando as palavras de Simeão ao ver finalmente o seu salvador. A segunda ária Schlummert ein pede o alívio do sono para os olhos cansados e a cantata termina com uma última ária, Ich freue mich auf meinem Tod, na qual o autor diz que se alegra pela chegada da sua própria morte.
A vida imita por vezes a arte, e não podemos deixar de pensar quanto deste texto era pessoal para Hunt na altura deste concerto. Uma interpretação notável e uma inspiração que tentarei seguir e honrar, não só no concerto de amanhã como nas récitas de ópera que se seguirão, numa série de dias marcados do ponto de vista artístico pela presença da morte.
Entre o ensaio geral e a estreia de Corpo e Alma vai ainda haver tempo para uma visita a Vila Viçosa. Amanhã, dia 27, às 21.00 na Capela do Paço Ducal irei interpretar duas cantatas de Bach, BWV 56 Ich will den Kreuzstab gerne tragen e BWV 82 Ich habe genug.

Em pleno período de ensaios deixo a imagem do cartaz promocional da ópera de Christopher Bochmann Corpo e Alma, que estreia na próxima sexta-feira, dia 28, às 21.00 no Salão Nobre do Teatro Nacional de S. Carlos.
