domingo, novembro 26, 2006

Mário Cesariny 1923 - 2006














Do capítulo da devolução

Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um
corpo incompreensível

aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino tristeza de menino a
quem tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer
de gritar

esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira de
tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os
que ainda podem interrogar as ondas e morrer

mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o
espaço te oferece, apontas rindo a meiga criatura
que pela rua arrasta a sua condição de animal
fulminado

depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de
um soldado a arder em febre, aves a percorrer o
seu novo deserto

mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do
homem é doce e iluminada como a noite como
um rasto de fumo sobre os hospitais

tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras
paragens; outra sombra, outros olhos seme-
lhantes

noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os
meus, altos como cidades, altos como flores

parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais
que descer as escadas, fechar ainda a porta do
teu quarto, atravessar de um pulo a minha própria
vida

agora posso sonhar até deixar de te ver

belo rio sem lágrimas

Mário Cesariny

...e o país ficou hoje mais pobre

quarta-feira, novembro 22, 2006

Dia de Santa Cecília

Quase no fim do dia deixo aqui a nota de que hoje se celebrou o dia da santa padroeira dos músicos e dos cegos (portanto muitos parabéns Andrea Bocelli...).
Tal como desde há vários anos participei no concerto de professores do Instituto Gregoriano e constatei que de todos os participantes era aquele que ensinava na escola há mais tempo. É oficial, estou a ficar velho. Talvez por isso tive que cantar duas canções só com uma nota: Ein Ton de Peter Cornelius e Adieu a la Vie de Rossini.
Também hoje se fosse vivo Benjamin Britten comemoraria o seu nonagésimo terceiro aniversário. Que melhor maneira haveria de concluir este poste do que recordar as palavras de W. H. Auden dedicadas a Britten e utilizadas por este no seu Hino a Santa Cecília?
Blessed Cecilia, appear in visions
To all musicians, appear and inspire:
Translated Daughter, come down and startle
Composing mortals with immortal fire.

terça-feira, novembro 21, 2006

Harry Potter and the Order of the Phoenix

Aqui fica a traila para os aficionados!!!!

A Rosa Púrpura de Alcochete

Há umas duas semanas tive a oportunidade de fazer dois concertos com uma das minhas obras favoritas, o Requiem de Mozart. Num destes concertos, o do Centro Cultural de Alcochete, repetiu-se uma sensação que tinha tido algumas vezes em concerto e que certamente terei muitas mais.
Aquilo de que falo nada tem que ver com o facto de uma vez mais, à boa portuguesa, se ter construido um edifício dedicado à cultura sem quaisquer acessos ou cuidado com a zona envolvente. De facto o dito centro cultural não tem nem uma placa indicativa em toda a vila de Alcochete e está ligado a esta apenas por estradas de terra. Isto num dia em que chovia torrencialmente não foi, evidentemente uma vantagem. Também não é um ponto a favor o facto de o dito Centro não ter nenhuma zona coberta no exterior, o que fez com que todo o público tivesse que escolher entre estar concentrado na entrada apinhada de gente ou à chuva. Também não falo das razões que levam um arquitecto a construir um edifício para estes fins e construir apenas quatro camarins sem espelhos nem casa de banho. Na zona de bastidor há apenas uma casa de banho mista. Para compensar, esta casa de banho tem dois chuveiros... Por último, não falo da magia organizacional que leva a que, ao ver dezenas de pessoas a mais do que a lotação da sala permite acomodar se deixe entrar todo o público sem controlar os bilhetes para depois se pedir que se evacue a sala já depois da hora marcada para o início do espectáculo e então sim controlar as entradas.
O símbolo maior do problema de que falo estava sentado à minha frente: um casal com uma criança, criança esta que durante todo o cncerto jogou com o seu Game-boy, chamando frequentemente a mãe para que esta visse a última jogada. Tudo isto foi feito sem ruido, mas distraia! Mais que isso, indica a preparação que o casal deu a esta criança para ir assistir ao concerto. É verdade que houve outros casos bem piores. Um criança numa das filas de trás corria sistematicamente de um lado para o outro da plateia de praçoa no ar imitando uma bailarina, outros dois irmãos pediam gemendo para que os pais os levassem embora, escolhendo cautelosamente o momento das pausas entre andamentos. Num interessante caso edipiano uma mãe dava beijos na boca ao seu filho enquanto este lhe apertava os seios. Como é óbvio, não se tratava de uma criança de colo. Se juntarmos a isto os casos mais habituais das pessoas que conversam em voz normal sobre todo o tipo de assuntos e os membros do "clube da primeira palma", que aguardam ansiosamente por qualquer momento de silêncio (como a suspensão no acorde de sétima diminuta no fim do Kyrie) para irromper em aplausos, penso que dará para imaginar o ambiente.
Aquilo que motiva o título deste poste é a sensação que tive a uma dada altura que para aquele público (e para tantos outros) os elementos em palco não são reais, ou pelo menos não presenciais. Parece-me que para muitos a invasão constante da TV leva a que os músicos de carne e osso que estavam a dar o seu melhor naquele momento não eram mais reais do que o elenco da Couve-Floribella ou qualquer outro programa ou filme. A falta de respeito pelo trabalho dos artistas presentes só pode ser explicada por esta falta de noção da realidade. A sensação que me deu foi que se algum de nós falasse com o público causaríamos a mesma reacção que o Jeff Daniels ao sair do écran de cinema para se dirigir a Mia Farrow no filme de Woody Allen.
Uma coisa eu sei. Eu próprio senti a mesma curiosidade e tive vontade de descer do palco e perguntar porque razão tinham ido àquele sítio. Talvez assim alguém dissesse mais tarde: I met a wonderful new man. He's fictional but you can't have everything.

sexta-feira, novembro 17, 2006

Ausências...

Aqui estou de volta a este espaço, após uma ausência prolongada causada por uma avaria no meu computador. É assustador ver como em tão poucos anos a nossa existência ficou condicionada pelo funcionamento de uma máquina.
Lembro-me de há alguns anos circular pela net um e-mail que comparava a Geração Heidi (a minha, nascida e crada noa anos 70) com a Geração Pokémon (as crianças dos anos 90). Uma das coisas mais marcantes é a evolução da tecnologia. Para a maioria dos meus alunos, sobretudo para os mais novos, já deve ser difícil imaginar um mundo sem Internet ou telemóveis, mas será que todos têm noção das diferenças?
Quando eu entrei para a escola (quase nos anos 80, atenção) tínhamos dois canais de televisão que emitiam a preto e branco. Eu, como grande parte das pessoas tinha um aparelho que só tinha um canal, portanto só podia ver a RTP 1. Este canal emitia só de manhã, parava à hora de almoço e voltava a transmitir à tarde, continuando pela noite dentro até à meia-noite ou, nos fins de semana, muito mais tarde que isso, com filmes que terminavam quase às duas da manhã!!! De manhã aos Sábados viam-se desenhos animados. Para além da Heidi havia o Marco, o Vicky, o Bana e Flapi, o Jacky, o Dartacão e o Tom Sawyer.
Os discos eram de vinil e copiavam-se para cassettes. Tanto uns como outros se deterioravam com o uso. Uns anos mais tarde apareceram os leitores de cassettes portáteis, que facilitaram a possibilidade de ouvir música fora de casa.
A maioria das pessoas não tinha telefone em casa. Os pedidos para os TLP (Telefones de Lisboa e Porto) demoravam vários anos a ser atendidos. O nosso estava pedido desde antes de eu nascer e apareceu já eu andava na escola.
Havia auto-estrada entre Lisboa e Vila Franca de Xira para o Norte e entre Lisboa e Setúbal para o Sul. Uma viagem para o Porto demorava perto de seis horas, contando com as paragens, claro. De comboio a mesma coisa, o que é relevante já que muita gente não tinha carro.
Jogavam-se jogos de tabuleiro e o Monopólio era sempre um dos favoritos. Passava-se pela casa partida e recebiam-se dois contos. Mais tarde apareceram os jogos de vídeo. O primeiro aparelho de que me lembro era de uma amiga minha e era o clássico e emocionante jogo de ténis no qual cada jogador controlava um traço que se movia na vertical pelo écran e tinha que interceptar um quadrado que se movia a velocidade nada estonteante.
Todas as crianças liam, nem que fossem os omnipresentes livros da Enid Blyton, os Cinco, os Sete, as Gémeas e outros que tais. Outro dos favoritos era o Petzi e a Anita para as meninas. Quando nos aproximavamos da adolescência liamos BD franco-belga: Tintin, Astérix, Luc Orient, Michel Vaillant, Blake e Mortimer ou qualquer outra coisa que nos aparecesse à frente. Os albuns só eram lançados depois de editados página a página na revista Tintin, "para jovens dos 7 aos 77 anos".
Coleccionavam-se cromos e levavam-se para a escola os repetidos para a troca. Os rapazes tinham os de futebol e das séries de ficção científica da moda (Espaço 1999, Star Trek, Galactica) e as meninas tinham os Dias Felizes.
Vestíamos todos roupas iguais (nos dias de ginástica os fatos de treino pretos ou vermelhos com as riscas brancas de lado) que já tinham vindo dos irmãos mais velhos e passariam para os mais novos. As crianças e adolescentes eram tendencialmente muito feiotas, cheias de borbulhas e não usavam cosméticos de qualquer tipo. Os poucos que fumavam ou namoravam antes do sétimo ano eram conhecidos por todos na escola como rebeldes!!!
Mais algum dos meus companheiros de Internet se lembra desta época? Ainda mais importante, sou só eu que às vezes me questiono se a Internet, os sessenta e tal canais de TV, os CDs, os MP3, os PCs, os DVDs e outros que "tês" valem mesmo termos que gramar com a Floribella e os Morangos com Açúcar???

terça-feira, novembro 07, 2006

Orphée

No meio da afonia depressiva (ou será depressão afónica) que me levou a cancelar o recital que tinha programado para amanhã no S. Carlos e que seria transmitido em directo para a Antena 2 resolvi tirar uns momentos para postar esta foto tirada no fim de uma das récitas da Déscente d'Orphée aux Enfers.
Foi um excelente exemplo de Lei de Murphy em acção, mas para cada um destes casos há sempre um de Milagre à Portuguesa, e esta não foi excepção. No meio de todas as atribulações conseguimos ter um excelente resultado, fazer boa música e, mais importante que tudo isto, divertirmo-nos à grande.
Mal posso esperar por repetir...

quinta-feira, novembro 02, 2006

Requiem de Mozart

Continuando uma sequência de muito trabalho (felizmente), vou ter a oportunidade de fazer mais dois concertos com uma das minhas obras favoritas. Desta vez com a orquestra Sinfonietta, o coro Ricercare, tudo dirigido pelo Vasco Azevedo. É engraçado pensar que da primeira vez que cantei o Requiem, há muitos, muitos anos no coro do IGL, estavam lá comigo a cantar membros do Ricercare, da Sinfonietta, o maestro e o solista tenor. Assim se vê que é um país pequenino.
Falando em solistas, reúne-se o "quarteto fantástico" que há poucos meses cantou a Petite Messe do Rossini: eu, a Marisa Figueira, a Natália Brito e o Marco Santos.
Os concertos são amanhã na Sé de Santarém e na sexta-feira no Centro Cultural de Alcochete, ambos às 21.30.
Será que alguém tem vontade de atravessar a ponte para ir até Alcochete?