terça-feira, novembro 21, 2006

A Rosa Púrpura de Alcochete

Há umas duas semanas tive a oportunidade de fazer dois concertos com uma das minhas obras favoritas, o Requiem de Mozart. Num destes concertos, o do Centro Cultural de Alcochete, repetiu-se uma sensação que tinha tido algumas vezes em concerto e que certamente terei muitas mais.
Aquilo de que falo nada tem que ver com o facto de uma vez mais, à boa portuguesa, se ter construido um edifício dedicado à cultura sem quaisquer acessos ou cuidado com a zona envolvente. De facto o dito centro cultural não tem nem uma placa indicativa em toda a vila de Alcochete e está ligado a esta apenas por estradas de terra. Isto num dia em que chovia torrencialmente não foi, evidentemente uma vantagem. Também não é um ponto a favor o facto de o dito Centro não ter nenhuma zona coberta no exterior, o que fez com que todo o público tivesse que escolher entre estar concentrado na entrada apinhada de gente ou à chuva. Também não falo das razões que levam um arquitecto a construir um edifício para estes fins e construir apenas quatro camarins sem espelhos nem casa de banho. Na zona de bastidor há apenas uma casa de banho mista. Para compensar, esta casa de banho tem dois chuveiros... Por último, não falo da magia organizacional que leva a que, ao ver dezenas de pessoas a mais do que a lotação da sala permite acomodar se deixe entrar todo o público sem controlar os bilhetes para depois se pedir que se evacue a sala já depois da hora marcada para o início do espectáculo e então sim controlar as entradas.
O símbolo maior do problema de que falo estava sentado à minha frente: um casal com uma criança, criança esta que durante todo o cncerto jogou com o seu Game-boy, chamando frequentemente a mãe para que esta visse a última jogada. Tudo isto foi feito sem ruido, mas distraia! Mais que isso, indica a preparação que o casal deu a esta criança para ir assistir ao concerto. É verdade que houve outros casos bem piores. Um criança numa das filas de trás corria sistematicamente de um lado para o outro da plateia de praçoa no ar imitando uma bailarina, outros dois irmãos pediam gemendo para que os pais os levassem embora, escolhendo cautelosamente o momento das pausas entre andamentos. Num interessante caso edipiano uma mãe dava beijos na boca ao seu filho enquanto este lhe apertava os seios. Como é óbvio, não se tratava de uma criança de colo. Se juntarmos a isto os casos mais habituais das pessoas que conversam em voz normal sobre todo o tipo de assuntos e os membros do "clube da primeira palma", que aguardam ansiosamente por qualquer momento de silêncio (como a suspensão no acorde de sétima diminuta no fim do Kyrie) para irromper em aplausos, penso que dará para imaginar o ambiente.
Aquilo que motiva o título deste poste é a sensação que tive a uma dada altura que para aquele público (e para tantos outros) os elementos em palco não são reais, ou pelo menos não presenciais. Parece-me que para muitos a invasão constante da TV leva a que os músicos de carne e osso que estavam a dar o seu melhor naquele momento não eram mais reais do que o elenco da Couve-Floribella ou qualquer outro programa ou filme. A falta de respeito pelo trabalho dos artistas presentes só pode ser explicada por esta falta de noção da realidade. A sensação que me deu foi que se algum de nós falasse com o público causaríamos a mesma reacção que o Jeff Daniels ao sair do écran de cinema para se dirigir a Mia Farrow no filme de Woody Allen.
Uma coisa eu sei. Eu próprio senti a mesma curiosidade e tive vontade de descer do palco e perguntar porque razão tinham ido àquele sítio. Talvez assim alguém dissesse mais tarde: I met a wonderful new man. He's fictional but you can't have everything.

Sem comentários: