O céu azul faz bom dormir.
Bóio, num íntimo abandono,
À tona de me não sentir.
E é suave, como um correr de água,
O sentir que não sou alguém,
Não sou capaz de peso ou mágoa.
Minha alma é aquilo que não tem.
Que bom, à margem do ribeiro
Saber que é ele que vai indo...
E só em sono eu vou primeiro.
E só em sonho eu vou seguindo.
Fernando Pessoa
Este poema é particularmente adequado para a minha vivência desta semana. É a primeira semana do ano lectivo e o Instituto Gregoriano começou da melhor maneira, com uma acção de formação para professores dada pelo Prof. Christopher Bochmann com o tema A Análise através da audição.
Quando digo que começou da melhor maneira é sem a menor ironia, já que quem conhece o Bochmann sabe que ele é absolutamente brilhante. Ter à nossa frente alguém que conhece ao pormenor uma porção considerável do repertório da História da Música Ocidental e que, para além de conhecer, consegue escrever e tocar ao piano na tonalidade certa qualquer parte de todas as peças que nos possam ocorrer, desde a Missa de Machault até ao Marteau sans Maître de Boulez é sem dúvida uma experiência que vale a pena.
Como é evidente, uma pessoa com esta bagagem é necessariamente uma pessoa ocupada. À conta disso, o plano original de ter a acção de formação a durar uma semana com cinco horas diárias (das 10 às 13 e das 15 às 17) teve de ser alterado. Em vez disso temos três dias das 9 às 13 e das 14 às 17. Sete horas por dia a começar às 9 da manhã. Com o calor que tem estado é uma provação que só se ultrapassa pelo facto de o formador ser quem é.
Ainda assim, confesso que a partir da terceira hora já começo a sentir os olhos a revirarem-se e a ficarem colados à nuca. Pouco depois disso chega aquele momento em que as pálpebras se juntam como se tivessem cola de contacto e quando finalmente conseguimos levantar a pálpebra superior ela nos prega a partida e leva a retina atrás. Neste momento temos os olhos completamente abertos mas não vemos nada e apercebemo-nos que se alguém olhar para nós só vai ver o branco dos olhos. Neste ponto surge o dilema: voltar a fechar os olhos e arriscar que todos percebam que estamos a dormir ou continuar a parecer um figurante da Noite dos Mortos-Vivos? Foi uma luta difícil, ao som de Schönberg e Webern. Nem os dois cafés que bebi no intervalo chegaram para eliminar a soneira patológica. Como disse, valha-me o Bochmann, garanto que com alguém menos interessante teria mesmo adormecido.
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