terça-feira, abril 01, 2008

Crítica no Expresso

Homenagem às mães dolorosas


Estreia no CCB do "Stabat Mater" de Eurico Carrapatoso


PontoContraPonto é uma das iniciativas mais interessantes do CCB: o convite à descoberta dos contrastes e paralelos entre duas obras com algo de comum, executadas no mesmo concerto. Desta vez a comparação era entre dois Stabat Mater: o de Eurico Carrapatoso (n. 1962) - uma encomenda do CCB em estreia absoluta - e o de Luigi Boccherini (1743 - 1805), composto em 1781; o primeiro tocado pela Orchestrutopica e o segundo pelo Divino Sospiro - as duas orquestras residentes (outra iniciativa louvável) do CCB. Foi, a quase todos os níveis um concerto perfeito.
(...)Em 1801 (Boccherini) compôs uma nova versão do Stabat Mater com mais dois solistas (contralto e tenor), "para evitar a monotonia duma única voz". Mas o perigo da monotonia não existe quando a cantora é do calibre de Alexandrina Pendatchanska - um soprano de voz cálida e apurada técnica que encantou o público que enchia o palco do CCB. O ambiente claustrofóbico e de luto negro dos bastidores quadrou-se bem com esta versão devota e íntima, às vezes ciciada da obra de Boccherini. Pendatchanska coloriu primorosamente o texto medieval, encontrou uma voz moribunda para o "Quando corpus morietur" e rematou brilhantemente, num crescendo cada vez mais claro, os Amens finais. Muito bonita prestação do Divino Sospiro sob a direcção de Enrico Onofri (embora às vezes eu tivesse preferido uma leitura menos arrastada).
Ainda mais notável foi a estreia do Stabat Mater de Carrapatoso - uma variante mais profana, com um soneto de Camões ("Dece do Ceo imenso Deus benino") bem pregado na cruz do texto tradicional. Não se perde uma sílaba (ao contrário do que acontece em Boccherini) e os tímbres das notas refulgem individualmente: a música de Carrapatoso faz a apologia do texto, da melodia e da tonalidade. À frente da Orchestrutopica, Cesário Costa continua a afirmar-se como o nosso melhor (e mais versátil) maestro. A obra começa no trompete (excelente António Quítalo), seguindo-se uma sequência de notas soltas no piano, quais sete lágrimas ou dores cravadas no coração de todas as mães. Há solos plangentes do violoncelo (Marco Pereira), intervenções apocalípticas da trompa, cordas percutidas do contrabaixo e o estilo declamado e homofónico do barítono solista, o excelente Armando Possante (também director do Grupo Vocal Olisipo, encarregado da parte coral). Este Stabat Mater vive dos contrastes entre as notas soltas do piano ou da percussão e o fluir untuoso das cordas e metais. Um dos prazeres maiores é a descoberta de translacções e simetrias - as intervenções do piano (Elsa Silva), a espiritualidade do falsete dos fins das estrofes, etc. A simetria maior é a do próprio tema: um Deus que se fez homem para que o homem pudesse ascender ao divino. Ou, no estro de Camões, "Se o homem quis ser Deus, que Deus seja homem."


Jorge Calado

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